FESTA DE SÃO TIAGO EM MAZAGÃO VELHO
A HISTÓRIA DA FESTA
A atual vila de Mazagão Velho, situada a
O evento fundamenta-se na lenda que
conta o aparecimento de São Tiago como o anônimo soldado que lutou heroicamente
contra os mouros. A lenda enfoca vários personagens e passagens interessantes:
Desde a conquista das terras africanas, os lusitanos, fervorosos católicos,
tentaram obrigar os muçulmanos a se tornarem cristãos e aceitarem a fé em
Cristo e o batismo de sua religião. Esse fato provocou a reação dos seguidores
de Maomé que declararam guerra aos cristãos, estes liderados na época pelos
capitães Atalaia, Jorge e Tiago.
“Puxo
a espada da bainha, em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo. Juro pela cruz
da minha espada, que so a colocarei na bainha quando pôr fim a essa batalha com
a minha vitória”. Com
estas palavras, o figurante faz, na tarde do dia 25, na frente da Igreja de São
Tiago, o juramento de São Tiago, um dos momentos mais importantes e
emocionantes da encenação.
Durante dias ocorreram batalhas
acirradas com grande vantagem para os lusitanos que se aquartelaram
heroicamente, resistindo aos constantes ataques dos mouros. Estes, chefiados
pelo Rei Caldeira, vendo que não venceriam seus antagonistas, imaginaram e
armaram uma cilada. Esta cilada consistia em pedir o fim da guerra e entregar
aos capitães cristãos maravilhosos presentes em forma de iguarias.
Os cristãos receberam os presentes com
grande surpresa e imediatamente desconfiaram que pudessem estar envenenados.
Assim jogaram uma parte da comida na granja dos mouros, onde ficavam os
animais, e guardaram a outra objetivando preparar uma contra-ofensiva. Sem nada
saber da desconfiança dos cristãos os mouros precipitadamente confiaram na
vitória da cilada que armaram e, à noite, deram um baile de máscaras,
estendendo o convite aos cristãos que quisessem passar para o seu lado, sem que
pudessem ser reconhecidos pelos seus superiores.
Os cristãos compareceram mascarados à
festa levando a parte da comida que haviam recebido como presente dos mouros e
a distribuíram aos seus inimigos que dançavam, bebiam e comiam.
Quando amanheceu o dia, algumas
autoridades mouras que costumeiramente visitavam a granja depararam com os
animais mortos e chegaram a ver os restos da comida oferecida por eles aos
cristãos. Imediatamente correram para despertar os soldados, ainda ressacados
da festa, e constataram um espetáculo pavoroso: muitos soldados jaziam mortos
por haverem comido o presente dos cristãos e entre eles estava o Rei Caldeira,
seu Chefe supremo.
O filho do Rei Caldeira, denominado
Menino Caldeirinha, assumiu o trono. Na manhã do outro dia os cristãos
aproveitaram o desespero e a desorganização de seus inimigos para atacá-los.
Porém, antes do ataque eles se
confessaram e prepararam-se espiritualmente fazendo um juramento. Daí, movidos
pela fé, iniciaram uma luta sem precedentes, só amenizada por volta do
meio-dia, quando os mouros, aproveitando o descanso dos cristãos, mandaram um
vigia - o Bobo Velho - para tentar persuadir seus conterrâneos que haviam se
convertido ao Cristianismo a retornarem para seu lado. Além disso, o Bobo Velho
poderia espionar o estado em que se encontrava a força dos seus inimigos. Os
cristãos perceberam que o Bobo Velho era mais uma trama dos mouros, mas mesmo
assim deixaram-no se aproximar do acampamento. Quando ele chegou perto,
apedrejaram-no jogando qualquer objeto que encontravam a seu alcance, que
desesperado corria assustado.
No fim da tarde, antes de iniciar a
batalha, os cristãos mandaram o Atalaia espionar os mouros. O Atalaia arrebatou
a bandeira do acampamento mouro, mas foi descoberto pelos inimigos que o
feriram. Mesmo ferido de morte o Atalaia conseguiu chegar próximo de seu acampamento
e lá atirou a bandeira a seus companheiros dando gritos de alerta. Em
represália, os mouros decapitaram-no, espetaram sua cabeça em uma vara e
colocaram-na junto ao muro do acampamento cristão para que estes ficassem com
medo. Ainda com planos para vencer os cristãos, o rei Caldeirinha mandou que
seus soldados fizessem uma passeata ao redor do acampamento a fim de raptar as
crianças cristãs, que curiosas, foram facilmente apanhadas.
Depois do êxito do plano elas foram
vendidas e o dinheiro arrecadado serviu para comprar armas e munição. Quando os
cristãos souberam do roubo de suas crianças iniciaram uma violenta batalha
carregada de grande heroísmo e fé. O rei Caldeirinha ainda propôs a troca do
corpo do Atalaia (que haviam levado para seu acampamento) pela bandeira moura
em poder dos cristãos. Estes aceitaram a troca mas na hora receberam o corpo e
não entregaram a bandeira. A batalha recomeçou com essa atitude e, ao
entardecer, os cristãos pediram a Deus que prolongasse o dia a fim de que
pudessem vencer tão desesperada luta.
Assim, parecia que o dia estava se
prolongando e os cristãos foram vencendo as batalhas que se sucediam até que o
jovem rei Caldeirinha foi aprisionado, enquanto seus soldados fugiam. Mortos
muitos infiéis mouros, os cristãos rejubilaram-se pela vitória agradecendo a
Deus e, em passeata, levaram o rei mouro vencido.
À noite, depois de tudo, organizaram um
baile chamado “Vomonê” ou “Vominê”,, que vem simbolizar a vitória alcançada por
eles.
(Fernando Canto)
As máscaras, na Festa de São Tiago, são usadas no Baile de Máscaras, que ocorre no dia 24 de julho, e é um dos aspectos ritualísticos mais importantes, por simbolizar emoções e cenas de regozinho a vitória que os mouros julgavam ter obtidos sobre os cristãos. O baile ocorre após terem oferecido comida envenenada aos cristãos, visando dar oportunidade aos que quisessem passar para seu lado.
É um baile de homens onde todos estão
fantasiados, mas às mulheres e crianças é proibida a participação. Eles dançam no sentido inverso ao do relógio
até ao amanhecer. Ao meio dia, um personagem mascarado chamado “Bobo Velho”
passa três vezes no terrritório cristão e é apedrejado pela assistência, pois
se trata de um espião mouro tentando obter informações. Na cena do “rapto das criancinhas cristãs”,
os “Máscaras”, dezenas de atores populares, surgem fantasiados, assustando e
arrebatando olhares de medos das crianças que os assistem.
A máscara parece ser uma transferência
de energias que tem o sentido de mutação e que transcende o drama. Já o “baile”
é uma festa dentro da festa. É uma cena de um drama em que paradoxalmente
ocorre a oportunidade de se desregrar (pela ingestão do álcool). Mas é quando
se subverte a realidade constituída,
pois a organização social do drama tem seus apelos e sanções: se há noticia de
uma outra festa na vila, os “Mascaras” vão até lá e acabam com ela. Fazem
respeitar as normas da tradição e tecem críticas à realidade através de um
grande boneco mascarado chamado “Judas”, que todo ano muda de nome, conforme o
momento histórico e a decisão dos que o confeccionaram.
O “Baile de Máscara” é uma forma de
representação do potencial subversivo das festas, não só pela crítica, mas pelo
dançar constante na direção inversa ao do ponteiro do relógio, tratando-se de
um embuste contínuo com o tempo, quando os brincantes giram e vão se
espiralando, afastando o tempo linear e vivendo a direção da memória num tempo
mítico, onde os acontecimentos heróicos se repetem pelos rituais.
Culturalmente as máscaras de Mazagão
Velho podem ser vistas como um aspecto místico da festa porque traduzem o
tempo, a memória e o ritual que organiza a memória, a história e a
sobrevivência da sociedade. Assim a cultura da festa se efetiva porque suas crenças,
gestos e valores são oriundos de um processo de criação de homens e mulheres, e
que são partilhados por todos, por meio de juízos de valor e símbolos.
A utilização da máscara na Festa de São
Tiago é de disfarce de aparência e de jogos estratégicos. E para entender
melhor esse processo nada como pôr no rosto uma caraça, pois assim cada um
assumirá também o papel que subverte e mete medo, e que também diverte, mas,
sobretudo, que une e corporifica os valores culturais daquela sociedade.
(Publicado no jornal Folha de Mazagão, de 25 de julho de 2011).
ROUBO
DE CRIANÇAS
No dia 25, dia final das encenações,
acontece a representação da batalha final entre Mouros e Cristãos. É a data
considerada mais importante para organização, o ponto alto da festa. Na
encenação, os cristãos usam
indumentárias brancas, enquanto os Mouros vestem uniformes vermelhos.
De acordo com o enredo histórico, muitos
soldados e oficiais mouros morreram envenenados depois da ação dos cristãos no
Baile das Máscaras, entre eles o rei Caldeira. O exército muçulmano estava
enfraquecido. O falecido rei caldeira fora substituído pelo filho, o
Caldeirinha, sagrado líder dos mouros, apesar de ainda ser criança.
A história conta ainda que depois de
crescer e começar de fato a comandar os mouros, ordenou que seus soldados
roubassem crianças cristãs que curiosas, foram facilmente capturadas. Depois do
êxito do plano as crianças foram vendidas e, com o dinheiro os mouros compraram
armas e munição., para aumentar seu poder bélico. As crianças que assistem ao
espetáculo são apanhadas simbolicamente pelos mascarados, mas tudo como uma
brincadeira para não assustá-las, já que os pais ou responsáveis podem
“resgatá-las” das mãos dos atores fantasiados com um pedaço de papel, simbolizando
a compra que consta na lenda. Assim, sem querer, os pais passam a ser os
compradores de seus próprios filhos.
PASSAGEM
DO “BOBO VELHO” E MORTE DE “ATALAIA”
O roubo das crianças iniciou uma
sangrenta batalha, que foi amenizada ao meio dia. Foi quando os mouros enviaram
um espião par ao acampamento dos cristãos: o “Bobo Velho”. No entanto, os
cristãos perceberam a presença do intruso e o expulsaram atirando-lhes paus,
pedras e outros objetos que encontravam pelo chão.
Na encenação mazaganense, um cavalheiro
vestido com roupa grossa e capacete cavalga três vezes pelas ruas da cidade e o
público pôde atirar bagaço de laranja para reproduzir a apedrejamento dos
cristãos. Mas nem sempre essa regra é seguida ao é da letra e há registros de
ferimentos causados por pedradas no figurante que faz o papel de Bobo Velho.
Ainda, segundo a epopéia, os seguidores
de Cristo também enviaram um espião para as trincheiras mouras: o Atalaia. Ele
conseguiu arrebatar a bandeira inimiga, mas foi descoberto e atirado pelos
soldados inimigos. Mesmo ferido gravemente, o atalaia conseguiu se aproximar do
aquartelamento cristão, para onde atirou o estandarte do povo inimigo. Em
represália, os mouros o decapitaram e colocaram a cabeça na ponta de uma lança
para intimidar os cristãos. O fim do Atalaia também é encenado na frente da Igreja, com a morte
cênica de um figurante.
APARIÇÃO
DE SÃO TIAGO E VITÓRIA CRISTÃ
O próximo episódio da tradição é a proposta
do rei Caldeirinha de trocar o corpo do Atalaia pela bandeira moura. Os
cristãos aceitaram a proposta. Porém, receberam o corpo de seu soldado, mas não entregaram a bandeira
inimiga, como acertado. Os combates recomeçaram com essa atitude, desta vez com
mais intensidade. O guerreiro Tiago jurou a Deus que venceria a guerra para que
a palavra do Senhor fosse obedecida:
“Juro
pela cruz da minha espada, que se não vencer essa batalha, serei morto e
degolado”, são as
palavras do figurante para dar vida ao juramento.
Ao anoitecer, o exército de Cristo pediu
a Deus para tornar o dia mais longo e, sgundo a lenda, foi atendido. Foi quando
São Tiago apareceu e ajudou os cristãos a vencerem sucessivas batalhas, com
ajuda daquele que era, até então, um guerreiro desconhecido. As tropas mouras
foram perecendo e, por fim, o rei Caldeirinha foi capturado e seus soldados
fugiram do front. Era a consolidação da vitória cristã, comemorada com a dança
do Vominê pelos soldados aliados.
Todos estes fatos são minuciosamente
reproduzidos no ultimo dia de festa, marcando fim da representação da Batalha e
da parte religiosa da Festa de São Tiago.
“VOMINÊ”,
A DANÇA DA VITÓRIA
Adendo forte do folclore da festa, o
Vominê é a dança que reproduz a comemoração da supremacia dos cristãos após a
consolidação da vitória sobre os mouros. Durante os 12 dias da festividade é
dançado em residências de famílias tradicionais de Mazagão Velho por volta de
cinco horas da manhã, nas alvoradas festivas sempre acompanhadas por salvas de tiro.
À tarde é a vez das crianças participarem
da dança.
Como forma de agradecimento, a família
anfitriã oferece um lanche, quase sempre biscoito com suco ou café para as
crianças e abstêmios e também, em alguns casos, bebida alcoólica para os
dançantes adultos. Uma dessas bebidas é a gengibirra, um tipo de batida feita
com gengibre – também servida na dança do Marabaixo, em Macapá. Aliás, as
semelhanças com a dança tradicional da capital são muitas.
No Vominê, a exemplo do Marabaixo, o som
da caixa comanda o ritmo da melodia que serve de plano de fundo para
letras. Na verdade, rimas feitas de
improviso, uma espécie de repente amazônico, com um refrão que poderia ser
descrito como um som sustenido da vogal
“e”. No caso da canção mazaganense, quase há referencia ao dono da casa
onde está sendo feito o ritual:
“Cadê o dono da casa,
Com ele eu quero falar.
Estou com a garganta seca
Um café e uma cachaça eu quero tomar”
Esta, acima, é um dos repentes, que em
Macapá chamamos de “Verso ladrão”.
As ladainhas, as salvas de tiro, as
alvoradas festivas e o Vominê ns residências da vila são os traços mais
importantes da Festa de São Tiago, e durante oito dias são símbolos que
antecedem o ponto máximo da festa: a encenação teatral da batalha entre mouros
e cristãos dividida entre os dias 24 e 25 de julho. (Publicado no jornal Folha
de Mazagão, de 25 de julho de 2011).
MISSA
CAMPAL
Na manhã de 25 de julho, o que se vê são
milhares de pessoas na procissão e na Rua Senador Flexa, que passa na frente da
igreja. São os visitantes, a renovar a fé ou para ver a encenação. A procissão
acontece por volta das 8h, depois da missa campal. Assim as imagens de São
Jorge e São Tiago percorrem as
principais ruas de Mazagão Velho, com os cavalheiros vestidos a caráter e
montados em seus cavalos. Nesse momento os fiéis aproveitam para agradecer e/ou
fazer suas promessas a São Tiago.
A festa é tão concorrida que chega a
faltar hospedagem, nada que a hospitalidade mazaganense não resolva.
Uma
festa só para as crianças
Depois do dia 25 de julho, quando
encerra a Festa de São Tiago feita pelos adultos, é hora das crianças
aprenderem a tradição que um dia será responsabilidade delas perpetuarem. Durante
os dias 27 e 28 de julho, respectivamente elas também encenam a entrega dos
resentes e a batalha entre mouros e cristãos, “ montadas” em cavalinhos
enfeitados com papel de seda e feitos de miriti, madeira comum na região.
Também há a alvorada festiva e a dança do Vominê, enfim, tudo o que os adultos
fazem.
A Festa de São Tiago Mirim também tem
direito aos uniformes brancos e
vermelhos do smouros e cristãos. E a tradição é levada a sério pelas crianças,
mesmo quando há a preocupação dos pais com que elas aprendam desde cedo a
respeitar a figura de São Tiago.
Nota: a pesquisa envolveu informações de
Gabriel Penha, Edgar Rodrigues e Fernando Canto. Não consegui a identificação dos autores das imagens. Se alguém identificar, por favor entre em contato com a gente.



Nenhum comentário:
Postar um comentário